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Colaborações Premiadas: uma guinada rumo à legalidade

POR Felício Nogueira Costa

Artigo original publicado em 1º de junho de 2020 no Boletim do IBCCRIM – Especial Lei Anticrime – edição 331 – junho de 2020 (acesso pelo link https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/51/449) – Confira abaixo a reprodução do artigo, aqui inserida em 11 de junho de 2020.

Resumo: O artigo analisa as mudanças legislativas da chamada Lei Anticrime (Lei 13.964/2019), que impactaram o regime dos acordos de colaboração premiada, apresentando uma análise crítica sobre o modelo de ampla negociação avistado na aplicação cotidiana do instituto, em especial no âmbito da Operação Lava Jato.

Em fevereiro de 2019, o Ministro da Segurança Pública e da Justiça, Sérgio Moro, apresentou ao Legislativo seu Pacote Anticrime, projeto de lei proposto para alteração de diversos dispositivos penais e processuais penais, visando ao combate à corrupção, ao crime organizado e aos crimes praticados com grave violência à pessoa. O trâmite legislativo da proposta, contudo, resultou em considerável transformação das disposições inicialmente formuladas. Exemplo disso foi a iniciativa da Câmara dos Deputados de acrescer ao projeto um novo conjunto de normas sobre a colaboração premiada, temática ausente na proposta inicial. Tal inovação legislativa alterou o regime jurídico das colaborações previsto na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013)([1]), impactando nos limites de negociação da pena atenuada a ser aplicada ao colaborador, tema que será abordado com destaque no presente artigo.

De início, uma análise sistemática da promulgada Lei 13.964/2019 permite visualizar alterações em três campos, quais sejam: (i) proteção ao direito de defesa do delatado; (ii) aprimoramento do procedimento voltado à colaboração; e (iii) delimitação do espectro de negociação entre os celebrantes do acordo. No primeiro tema, o delatado tem assegurado o direito de falar no processo após o delator, bem como a garantia de que a palavra do colaborador não será o bastante para a imposição de medidas cautelares ou para o recebimento de denúncia. Em relação ao segundo ponto destacado, o procedimento da colaboração premiada, notável foi o influxo provindo da Orientação Conjunta 1/2018 do Ministério Público Federal, que estabeleceu parâmetros para elaboração e assinatura de acordos de colaboração premiada. O regulamento ministerial inspirou, em parte, as deliberações do Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados([2]) e resultou em regime procedimental mais bem estruturado para a tramitação de propostas de acordo.

O presente artigo tem como enfoque o terceiro tópico listado: a delimitação dos benefícios a serem negociados pelos celebrantes do acordo de colaboração premiada, aspecto que determina as balizas da amenização da pena do criminoso arrependido. Nessa temática, o Legislativo deixou de adotar o regime da citada Orientação ministerial, dando sinais evidentes de que não entende adequado o modelo de pactuação de benefícios até aqui empregado pelo Ministério Público Federal, cristalizado em sua norma interna e particularmente inspirado nas colaborações premiadas firmadas na esfera da Operação Lava Jato.([3])

No âmbito dessa operação, os acordos costumavam aplicar ao delator uma chamada “pena máxima unificada” que, segundo a já citada Orientação Conjunta, é negociada pelas partes visando a determinação de um “patamar máximo unificado de pena decorrente do somatório das sentenças condenatórias, o qual, ao ser atingido, levará à suspensão das demais ações e investigações em curso e seus respectivos prazos prescricionais”.([4]) Segundo a fórmula exposta, a título de exemplo, o doleiro colaborador Alberto Youssef contratou a pena máxima de 30 anos de prisão; outros conhecidos personagens dos noticiários brasileiros, como o antigo diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e o ex-senador Delcídio do Amaral, acordaram penas máximas de 20 e 15 anos, respectivamente.

Ocorre que, nesse modelo de acordo, a pena corpórea máxima estipulada não era cumprida pelo colaborador em sua inteireza,([5]) pois havia cláusulas indicando que apenas uma parte da pena inscrita em acordo deveria ser efetivamente executada. Essa reduzida fração de reprimenda rotineiramente era cumprida nos chamados regimes diferenciados,([6]) caracterizados pela prisão domiciliar, em que é abrandada a privação à liberdade.

É possível dizer que a disciplina da colaboração premiada contida na Lei Anticrime representou evidente repulsa ao modelo até então predominante de penas máximas e regimes diferenciados. A rejeição ao modelo observado, na prática, se deu especialmente em razão da norma do novo inciso II do §7º do art. 4º da Lei das Organizações Criminosa, que passa a determinar que só serão homologados os acordos cujos benefícios pactuados se adequem àqueles previstos em Lei.([7]) Em oposição ao superficial juízo de homologação até então avistado nas cortes pátrias, deve o magistrado, daqui em diante, declarar nulas as cláusulas que pactuem regime inicial de pena e sua progressão fora dos parâmetros da Lei Penal, repelida a pactuação que desfigure os regimes de cumprimento de pena privativa de liberdade.

Cabe dizer que a Lei das Organizações Criminosas originalmente não previu a possibilidade de que fossem firmados acordos versando sobre “pena máxima unificada” e regimes diferenciados, muito embora fossem eles corriqueiros no contexto jurídico nacional e aceitos principalmente pela Justiça Federal do Paraná, bem como, na maior parte dos casos, também pelo Supremo Tribunal Federal. Apesar da falta de previsão legal, formou-se uma corrente de juristas, que afirmava a possibilidade de ampla negociação entre celebrante de acordo e o colaborador; dentre eles se encontrava, por exemplo, Andrey Borges de Mendonça, segundo o qual a legalidade das penas não pode militar em prejuízo do acusado colaborador, devendo prevalecer a autonomia da vontade na pactuação do acordo.([8])

Em oposição a essa maneira de pensar, posta-se como posição mais razoável a adotada pela corrente oposta, segundo a qual apenas se pode aplicar ao delator os benefícios com previsão legal. Isso porque a colaboração premiada é meio de obtenção de provas, que deve ser empregado de maneira excepcional e no âmbito da criminalidade organizada, de tal forma que a expansão extralegal dos benefícios passíveis de negociação configuraria um desproporcional incentivo em matéria de direito premial. Não se pode esquecer a natureza pública do Direito Penal, o que fez Alamiro Velludo Salvador Netto afirmar, em recente artigo publicado nesse mesmo Boletim, que a “questão passa pela reafirmação da execução penal como um ambiente de cogência e legalidade, não havendo espaço possível para a elaboração particular de um estatuto específico para o caso concreto”.([9])

Antes mesmo da alteração normativa decorrente da promulgação da Lei Anticrime, era possível afirmar que a contratação de penas máximas não encontrava abrigo nas leis brasileiras, especialmente porque a Constituição da República estipula que não há pena sem prévia cominação legal. Tal atributo se exige de qualquer sanção penal, seja ela rígida ou abrandada.

A partir de agora, a Lei das Organizações Criminosas não deixa dúvidas de que apenas os prêmios com previsão legal podem ser dados aos colaboradores da justiça. Sai, então, de campo a possibilidade de penas máximas pré-definidas, pois a Lei citada prevê apenas a pactuação de uma redução percentual de pena, fração limitada a dois terços da pena cheia, benefício que costumeiramente incide na sentença condenatória. A diferença entre um e outro modelo é que, no primeiro deles, Ministério Público e Polícia tinham, na prática, um maior espectro para barganha da pena do delator.

Isso não significa que os acordos de colaboração premiada deixarão de ser atrativos a quem opte pela delação, pois o Ministério Público segue podendo oferecer o benefício máximo estipulado em lei, o não oferecimento de denúncia. O também chamado pacto de imunidade, que segue sendo excepcional – em ambos os sentidos da palavra -, foi negociado nos conhecidos acordos de colaboração firmados entre a Procuradoria-Geral da República e executivos da empresa J&F, dentre eles o empresário Joesley Batista.([10])

A alteração do regime das colaborações premiadas não era o intuito buscado pelo Pacote Anticrime inicialmente proposto. No entanto, parece claro que, nessa seara, a Lei ao fim promulgada teve como tônica o esforço de trazer o instituto de direito premial de volta ao prumo da legalidade[11], rejeitando o panorama de negociação imoderada da pena do colaborador premiado. O diploma normativo põe fim, portanto, a um interregno de anos nos quais se negociou acordos de colaboração generosos, mas, por vezes, sem previsão legal.

Notas de rodapé
[1]) A colaboração premiada pode ser definida como “um acordo realizado entre acusador e defesa, visando ao esvaziamento da resistência do réu e à sua conformidade com a acusação, com o objetivo de facilitar a persecução penal em troca de benefícios ao colaborador, reduzindo as consequências sancionatórias à sua conduta delitiva” (VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 62). A Lei 12.850/2013 é, atualmente, a principal norma a disciplinar a colaboração premiada, sem prejuízo doutros regimes legais, a exemplo daqueles previstos nas Leis dos Crimes Hediondos (8.072/90) e de Proteção a Vítimas e Testemunhas (9.807/1999).

([2]) O Relatório Final do Grupo de Trabalho – Legislação Penal e Processual Penal, instituído para analisar os Projetos de Lei 10.372/2018, 10.373/2018, e 882/2019, da Câmara dos Deputados, no tema colaboração premiada, retrata a preocupação do Legislativo com “lacunas que demandam urgente correção para que se evitem eventuais abusos” (íntegra disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/legislacao-penal-e-processual-penal/documentos/outros-documentos/Relatorio%20Final%20-%20GT%20Penal>. Acesso em: 9 abr. 2020).

([3]) Operação conduzida pela Polícia Federal e Ministério Público Federal originariamente voltada à apuração de delitos de corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da estatal Petrobras, iniciada no estado do Paraná, no ano de 2014 (disponível em: <http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/lava-jato/entenda-o-caso>. Acesso em: 9 abr. 2020).

([4]) Título I, Capítulo IV, Item 26.1, alínea “a”, da Orientação Conjunta 1/2018.

([5]) Conforme previsto no Título I, Capítulo IV, Item 26.1, alínea “b”, da Orientação Conjunta 1/2018, que permite a negociação da “pena que será efetivamente cumprida pela parte em regimes a serem definidos no acordo”. Vide, como exemplo, a cláusula 5ª, III, do acordo de colaboração premiada de Alberto Youssef, que estipula o cumprimento de até cinco anos de pena privativa de liberdade (disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2015/01/acordodela%C3%A7%C3%A3oyoussef.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2020).

([6]) Tais regimes são divididos em subcategorias análogas aos regimes de pena previstos em Lei, de tal forma que, costumeiramente, no chamado regime fechado diferenciado, o colaborador fica recluso em sua residência; no semiaberto diferenciado, pode trabalhar durante o dia, recolhendo-se à sua residência à noite e nos finais de semana; no regime aberto, sua liberdade somente é limitada no período noturno.

([7]) Lei 12.850: “Art. 4º (…) § 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: (…) II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo; (…)”

([8]) MENDONÇA, Andrey Borges de Mendonça. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord). Colaboração Premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. pp. 53-104.

([9]) SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Execução penal: ambiente de cogência ou espaço de dispositividade? Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 324, pp. 4-6, nov. 2019.

[10] Cuja delação teve grandes impactos na política nacional, por atingir diversos ex-Presidentes da República.

[11] Apesar da inserção de norma que permite a negociação quanto à proposição de cautelares (art. 3º-B, §3º, da Lei 12.850/2013, em sua nova redação). Destaque-se, que o dispositivo trata da negociação da mera proposição da medida, não a efetiva imposição de cautelares, que segue sendo matéria a ser decidida por magistrado.

Felício Nogueira Costa Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP. Advogado. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3643728591979504 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4635-1239 felicio.nogueira@gmail.com Recebido em: 15.03.2020 Aprovado em: 31.03.2020 Versão final: 17.04.2020

Felício Nogueira Costa

Mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP. Advogado.

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