A Portaria nº 12.072/2021 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional: indevida e abusiva intromissão no processo penal.
POR Flávia Rahal e Camila Austregesilo Vargas do Amaral
- Considerações iniciais
Instrumento de garantia do acusado contra o arbítrio estatal no Estado Democrático de Direito, o processo penal funciona como verdadeiro anteparo do indivíduo, assegurando-lhe direitos e garantias consagrados pela Carta da República. É ele o alicerce no qual se materializa a força legítima da atuação estatal, guiado pelos preceitos constitucionais, os quais devem nortear todas as normas e diretrizes que digam respeito ao resguardo do cidadão, como ferramenta protetora da liberdade.
Por essa razão,
“o processo penal deve ser lido à luz da Constituição e da CADH e não ao contrário. Os dispositivos do Código de Processo Penal é que devem ser objeto de uma releitura mais acorde aos postulados democráticos e garantistas na nossa atual Carta, sem que os direitos fundamen- tais nela insculpidos sejam interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 1941″ (LOPES JÚNIOR, 2077, p. 36).
O processo penal consubstancia, então, “a primeira e mais fundamental garantia do indivíduo, pois é por meio desse instrumento que se realiza a proteção efetiva dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição” (GOMES FILHO, 2013, p. 25). É que “a predeterminação do procedimento representa importante ferramenta de contenção do arbítrio do Estado, evitando quaisquer surpresas para o defendente” (MALAN, 2003, p. 43).
Daí por que, em um Estado em que vigora a democracia, o ordenamento jurídico penal e processual penal volta-se
“para a tutela da liberdade como forma de limitação a esse que é o mais violento dos poderes estatais e que, enquanto ainda existente, há de ser rigidamente contido” (KARAM, 2009, p. 400).
Nesse sentido, no Estado Democrático de Direito o poder estatal há de ser limitado e exercido em consonância com os postulados estabelecidos na Constituição Federal (CF), dentre eles, aqueles que dizem respeito ao Direito Penal e Processual Penal, a exemplo da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVIl, ampla defesa e contraditório (art. 59, inciso LV), ambos corolários do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV).
Cumpre salientar que é imposto um elemento limitador do poder estatal no Direito Penal.
O processo penal e todas as normas que possam implicar alguma repercussão de natureza penal devem estar integrados neste mesmo sistema, de modo a tutelar os direitos e garantias individuais, atuando como instrumento a serviço da ordem constitucional. Assim,
“pode-se afirmar, com toda ênfase, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes (débil), ou seja, o processo penal como direito protetor dos inocentes (e todos a ele submetidos o são, pois só perdem esse status após a sentença condenatória transitar em julgado), pois esse é o dever que emerge da presunção constitucional de inocência prevista no art. 5º, LVII, da Constituição” (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 36).
Contudo, como se sabe,
“as demandas inerentes ao sistema penal, derivado do sistema jurídico, acabam por sofrer indiscutível influência ou pressão dos grupos sociais, por meio dos mecanismos de operação do sistema político, pressões cujo resultado pode ser socialmente diferenciado consoante o paradigma político-jurídico adotado, refletindo diretamente sobre as aspirações de democratização do processo enquanto instrumento” (PRADO, 2007, p. 33).
Sem que se pretenda desenvolver uma exposição mais aprofundada sobre o tema – inviável nos limites deste texto —, cumpre salientar que também é imposto um elemento limitador do poder estatal no Direito Penal, cuja intervenção deve se restringir somente aos casos em que os demais ramos do Direito não forem suficientes para resguardar os bens jurídicos que se pretende proteger. Daí decorrem dois dos principais pilares do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, consistentes no da intervenção mínima e no da subsidiariedade às demais áreas do Direito, circunscrevendo sua área de incidência aos fatos que realmente legitimem a intervenção penal. Vale dizer, como ultima ratio, o Direito Penal somente se justifica nas hipóteses em que “outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes” (BITENCOURT, 2014, p. 54) para a tutela de determinado bem jurídico.
Entretanto, é importante que não se confunda exclusão da incidência da norma penal incriminadora nas hipóteses não merecedoras de resposta penal com uma política criminal leniente que acabe por desvirtuar todo o sistema penal.
Foi o que aconteceu com os crimes contra a ordem tributária diante da previsão de extinção da punibilidade quando realizado o pagamento do tributo devido, ex vi dos arts. da Lei nº 8137/1990, 34 da Lei nº 9.249/1995 e 83, 8 4º, da Lei nº 9.430/1996.
Não nos parece que o legislador, quando pune criminalmente a conduta daquele que incorre na prática do crime de sonegação fiscal, pretenda legitimá-la. Entretanto, na medida em que esse mesmo legislador permite que a quitação do débito seja caminho para livrar de um processo criminal o alegado sonegador, dá à norma penal tributária uma função meramente arrecadatória. A consequência disso é um sistema que deturpa a lógica da política criminal adotada, já que, na essência, desvirtua a própria finalidade do direito material.
Vale dizer,
“o propósito punitivo daquele que comete algum dos tipos penais previstos no rol de crimes contra a ordem tributária é substituído, pelo ordenamento jurídico, pelo propósito de coagir o contribuinte ao pagamento do tributo, pelo qual estaria o sujeito isento de punição penal” (CARVALHO; BUENO, 2018, p. 242).
Mas ainda que se argumente que o conceito da extinção da punibilidade pelo pagamento seja o resultado de uma tentativa de equalizar a incidência das normas tributárias e incriminadoras, é certo que a medida reforça o despropósito da criminalização da sonegação fiscal. Afinal, o afastamento da sanção penal quando efetuado o pagamento do débito tributário leva à conclusão de que aquele fato nem sequer deveria ser classificado como criminoso.
Sob a óptica do sistema penal, em situações de conduta cuja lesividade extrapole o patamar da lesividade fiscal, não faz nenhum sentido que o Estado tenha interesse em coagir o contribuinte a pagar o débito devido em troca da extinção de sua punibilidade.
Tal heresia jurídica levou a um cenário de ruptura dos paradigmas do sistema penal tradicional, acarretando uma série de consequências do ponto de vista criminal, São muitos os efeitos deletérios dessa opção do legislador, a começar pela instrumentalização do Direito Penal como forma coercitiva do Estado voltada à arrecadação tributária. Ou seja, em virtude dessa incoerência dogmática, desnatura-se o Direito Penal, que não mais serve “como mecanismo para prevenção ou repressão ao cometimento do crime” (CARVALHO; BUENO, 2018, p. 238).
A esse respeito, Luciano Feldens (2002, p. 193) bem destaca que
“tratou-se de forma abertamente mais benevolente uma hipótese delitiva sabidamente mais grave, porquanto atentatória ao Estado Social em toda a sua dimensão estrutural, atitude que toma por provocar, ainda que obliquamente, uma inexorável ruptura na hierarquia dos bens jurídicos penalmente protegido”.
Ora, “são justos e legítimos os anseios por um sistema de justiça criminal eficiente e célere”, mas não se pode perder de vista que
“é eficiente um sistema que, sem sacrificar o exercício dos direitos e garantias individuais, consiga atender aos interesses sociais reproduzidos em um processo penal” (SCHIET TI, 2019, p. 324).
Ademais, na falta de uma regulamentação específica do “processo penal tributário”, foi surgindo uma série de normativas sobre o tema, instituindo-se prazos e programas para pagamento do tributo objeto da autuação com o propósito de encerrar o procedimento criminal.
Neste contexto também foi publicada a Lei nº 9.430/1996, que estabelece, dentre outras coisas, que
“a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1ºe 2º da Leinº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente” (art. 83).
O julgamento do Habeas Corpus nº 81611 pelo Pleno da Suprema Corte trouxe um novo pano de fundo a essa discussão ao resultar, em 2009, na edição da Súmula Vinculante nº 24, cujo enunciado estipula que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos | a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Seguindo essa mesma orientação, a Receita Federal editou a Portaria RFBnº 1,/50/2018, dispondo, em seu art. 10, que
“a representação fiscal para fins penais deverá permanecer no âmbito da unidade responsável pelo controle do processo administrativo fiscal até a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente”.
Na contramão dessa diretriz, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional publicou, em outubro de 2021, a Portaria nº 12.072/2021, que trata dos “procedimentos de envio das representações para fins penais aos órgãos de persecução penal”.
A Portaria nº 12.072/2021 invade competência privativa, pois não se limitou a meramente regulamentar procedimentos.
Mais do que reforçar o propósito arrecadatório e estabelecer procedimentos à margem da normativa da Receita Federal e do enunciado da Súmula Vinculante nº 24 da Corte Suprema, a mencionada portaria ainda inova ao prever sua atuação na esfera penal.
- A Portaria nº 12.072/2021 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional: uma sucessão de abusos
Para além de todas as impropriedades de suas disposições, a aludida portaria já nasce de forma controversa e inconstitucional ao pretender regulamentar matéria de Direito Processual Penal por meio de um órgão administrativo fiscal, e não pelo legislador.
A CF, em seu art. 22, inciso I, atribui à União competência privativa para legislar sobre Direito Penal e Processual, dentre outros. À Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional não é consentido disciplinar sobre assuntos de competência privativamente reservada à União.
Como se verá adiante, a Portaria nº 12.072/2021 invade tal competência privativa, pois não se limitou a meramente regulamentar procedimentos, mas contém normativas relacionadas a matéria afeta ao Direito Penal e Processual Penal.
Afora isso, a norma ignora a necessidade de se aguardar o término do processo administrativo fiscal para o envio de representação fiscal para fins penais ao Ministério Público (MP), transgredindo o procedimento estabelecido pela Portaria nº 1.750/2018 da Receita Federal e pelo art. 83 da Lei nº 9.430/1996, e ainda vai de encontro à orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com a edição da Súmula Vinculante nº 24.
Em seu art. 3º, estabelece a portaria que as representações fiscais para fins penais “deverão ser encaminhadas em até 60 (sessenta dias)” a partir do i) “encerramento das diligências investigativas por parte da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, se necessárias”; ou ii) “da ciência dos fatos, se não houver necessidade das diligências mencionadas no inciso I ou se mostrar conveniente e oportuno o encaminhamento imediato”.
É forçoso reconhecer o alto grau de subjetividade quando se fala em “conveniência” ou “oportunidade” para comunicação dos fatos ao MP, o que traz inegável insegurança jurídica e fomenta o malfadado caráter arrecadatório do Direito Penal nos crimes tributários. Afinal, parece-nos bastante previsível que a Procuradoria da Fazenda venha a escolher como convenientes e oportunos justamente os casos de débitos tributários de valores mais expressivos ou, ainda, os contribuintes com maior capacidade financeira.
Além disso, é igualmente merecedora de críticas a discricionariedade com que o procurador da Fazenda poderá selecionar os casos que ensejarão o encaminhamento de representação fiscal para fins penais, pois, na dicção da norma, essa escolha será feita a partir de “circunstâncias potencialmente enquadráveis nas hipóteses do caput do art. 1º [da Lei nº 8.137/90]”.
Eis aqui mais uma demonstração de que, na prática, o procurador da Fazenda recebeu carta branca para enviar as representações fiscais quando bem entender. Afinal, qualquer autuação de sonegação fiscal poderia, teoricamente, ser qualificada como “potencialmente” enquadrável no mencionado delito que trata, como se sabe, da sonegação fiscal.
Tamanha é a discricionariedade concedida ao ente estatal que lhe foi outorgado poder até mesmo para aferir se, além de indício de crime contra a ordem tributária, o processo administrativo apresenta “indicativo de concurso de crimes com outras espécies delitivas”, hipótese em que a representação deve ser encaminhada no prazo dos 60 dias ainda que o débito tenha sido parcelado (art. 3º, § 1º). Vale dizer, a portaria chega ao absurdo de permitir que o procurador da Fazenda avalie se há alguma evidência de lavagem de dinheiro, corrupção, falsidade ou qualquer outro delito, fazendo, assim, juízo acusatório que não lhe compete.
O advento desse novo regramento surge como mais um braço do órgão administrativo fiscal voltado a exercer forte coação contra o contribuinte, especialmente se a hipótese criminal estiver pintada com cores fortes pelo procurador da Fazenda, o que certamente influirá em sua decisão de evitar o risco do processo criminal pelo pagamento do débito fiscal. Afinal, por mais forte que seja a convicção do contribuinte em sua defesa administrativa, quem há de lhe assegurar qualquer garantia de absolvição na esfera criminal?
A pressão pelo pagamento fica bastante evidente no § 1º do art. 3º, ao dispor que, no caso de “parcelamento dos créditos tributários atrelados aos fatos potencialmente criminosos, o prazo de 60 dias para o envio da representação para fins penais será contado a partir do restabelecimento da exigibilidade”. Ou seja, a Única preocupação da Fazenda é mesmo com o pagamento, embora venha a dispor sobre matéria com repercussão penal.
A previsão do § 2º do mesmo art. 3º igualmente escancara o mecanismo coercitivo do Estado para a arrecadação dos tributos quando dispõe sobre a possibilidade de postergação do envio da representação fiscal “até a efetivação das eventuais constrições requeridas nas ações exacionais, a fim de evitar a dilapidação patrimonial”. Como se vê, o texto nem sequer disfarça que a prioridade é a satisfação da dívida, e não a prevenção ou repressão ao suposto cometimento de crime.
Ora, não se pode confundir política fiscal com política criminal. São sistemas completamente diversos, embasados por perspectivas e objetivos distintos, algumas vezes incompatíveis entre si. Daí por que a regulamentação de matéria atinente ao Direito Penal e Processual Penal jamais poderia ter sido feita por órgão com olhar voltado única e exclusivamente à arrecadação tributária.
Afinal, “interessa à comunidade saber não apenas que os culpados foram punidos, mas que a inflição da pena decorreu de um processo no qual tenham sido observadas as ‘regras do jogo”, sem favorecimentos indevidos, sem atropelos, se excessos e arbitrariedades” (SCHIETTI, 2019, p. 326).
Felizmente, embora à primeira vista pareça criar uma zona cinzenta, é certo que a nova portaria da Fazenda Nacional não tem o condão de alterar o posicionamento da Corte Suprema, tampouco de violar a regra estabelecida pelo art. 83 da Lei nº 9.430/1996 e pela Portaria nº 1.750/2018 da Receita Federal.
A propósito, recentemente, no último dia 10 de março, o STF, por maioria de votos, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 4980 proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) visando à declaração de inconstitucionalidade do art. 83 da Lei nº 9.430/1996 em relação aos crimes formais. Em suma, a PGR pretendia que a Corte Suprema acolhesse o argumento de que, no caso dos denominados crimes formais, o envio da representação fiscal para fins penais ao MP prescindiria da imposição do encerramento do processo fiscal.
Conquanto o v. acórdão ainda não tenha sido publicado, o que impede o conhecimento pormenorizado da decisão, é certo que a Corte Suprema confirmou a impossibilidade de que o contribuinte seja coagido a quitar o débito tributário ou previdenciário cuja existência e valor estejam pendentes de decisão na esfera administrativa.(1)
- Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/informativoSTF/anexo/Informativo_PDF/Informativo_stf_1047.pdf. Acesso em: 28 abr. 2022.
2.1 O novo papel da Procuradoria da Fazenda: intrusão indevida no processo penal
Além de conferir amplos poderes ao procurador da Fazenda Nacional para agir com discricionariedade no envio de representações fiscais aos órgãos de persecução, a portaria ora tratada, em seu art. 7º, ainda autorizou que a Fazenda recorra de eventual arquivamento da representação pelo MP, nos termos do art. 28, § 1º, do Código de Processo Penal (CPP).
É certo que a nova portaria da Fazenda Nacional não tem o condão de alterar o posicionamento da Corte Suprema.
Embora suspensa a vigência do referido artigo por força de decisão liminar exarada na Adin nº 6.305 (2) é preocupante que o entendimento da Fazenda sobre questões criminais prevaleça ao do próprio MP, este sim o titular da ação penal de crime contra a ordem tributária.
- STF Adin nº 6305-DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 21/1/2021
A situação revela-se ainda mais alarmante diante do disposto no art. 6º da portaria autorizando que o órgão administrativo solicite “o acompanhamento, como assistente da acusação, de todo o trâmite da ação penal decorrente da representação enviada”.
A permissiva desvirtua completamente o sistema penal e é com ele incompatível, já que compromete a dialética do processo penal ao gerar um desequilíbrio de forças em virtude da permissão de que mais um órgão do Estado assuma a condição de acusador como parte aderente.
É que diante da nova previsão do dispositivo, o sujeito passivo da ação penal de crime tributário vê-se diante de dupla força estatal, a já exercida pelo parquet e, agora, a da Procuradoria da Fazenda.
O dispositivo ainda estabelece que nos casos em que
“a ação pública não for intentada no prazo legal pelo órgão do Ministério Público, em relação a fatos que tenham ensejado lesões à Fazenda Nacional, poderá ser proposta ação penal privada subsidiária da pública, nos termos do art. 5º, LIX, da Constituição Federal”.
Para além de um desequilíbrio de forças entre o Estado e o cidadão, o dispositivo também desnatura o papel da autoridade fiscal ao lhe dar uma atribuição que não é sua.
Com efeito. O CPP prevê, em seus arts. 268 e ss., que o ofendido ou seu representante poderá ingressar como assistente de acusação no processo criminal. Excepcionalmente, o legislador admitiu a possibilidade de a Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil(3) virem a figurar como assistentes de acusação quando os delitos apurados tiverem sido praticados no âmbito dessas entidades.
3.Conforme art. 26, parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986
Sem que se pretenda adentrar em discussão sobre a (in)constitucionalidade da figura do assistente de acusação,(4) uma coisa é certa: a portaria aqui tratada jamais poderia ter ido além do que a legislação estabelece para fazer inserir nova modalidade de assistente de acusação.
4.Segundo Aury Lopes Júnior (2020, p. 884-285), “como não é possível assistente da acusação na ação penal de iniciativa privada (pois ele é o autor principal) e, na pública, a promoção é de atribuição ‘privativa’ do Ministério Público, não estaria recepcionada pelo texto constitucional a figura do assistente da acusação, sendo ilegítima sua intervenção”.
Não bastasse esse atropelo, soa completamente desarrazoado que o órgão que deveria ser isento — até porque é o encarregado pela autuação — assuma posição confessadamente antagônica no processo penal, na medida em que “o assistente de acusação é sujeito parcial, coadjuvando o Ministério Público no exercício da tese acusatória” (BADARÓ, 2019a, p. 307).
Como bem salienta a melhor doutrina,
“tem prevalecido o entendimento de que o Poder Público não pode intervir como assistente, pois seria uma superfetação a ingerência da Administração Pública na ação penal pública, movida por um órgão — o Ministério Público — que já atua em nome do Estado” (BADARÓ, 2019a, p. 310).
Consoante entendimento já consolidado em nossos tribunais,(5) a materialidade dos crimes tributários pode ser comprovada por meio da constituição definitiva do crédito. Ou seja, a palavra do Fisco é alçada à categoria de prova da materialidade delitiva, consubstanciando o cerne da acusação criminal.
- Conforme Súmula Vinculante nº 24 do STF.
Ora, soa de todo incoerente que o mesmo Fisco cuja conclusão é tomada como prova de materialidade venha a figurar como parte adversa na ação penal a ser instaurada. Afinal, se a autoridade fazendária tem legitimidade para ingressar nos autos na qualidade de vítima, isso significa que ela não é isenta e, por essa razão, jamais poderia ter sido a responsável pela elaboração do material, do corpo de delito que embasa toda a narrativa acusatória.
De outra via, se a constatação de ser devido o tributo há de ser feita pela autoridade fiscal — teoricamente mais aparelhada e mais conhecedora do tema -, presume-se que tal aferição foi feita a partir de um olhar técnico e imparcial, e não por parte interessada na causa a ponto de nela ingressar como assistente de acusação.
Além de colocar em xeque a credibilidade da prova de materialidade, a posição de assistente de acusação pela Procuradoria da Fazenda também traz reflexos na prova instrutória, pois impediria que a autoridade fiscal fosse ouvida como testemunha.
- Arrecadação tributária não é função do processo penal
São muitos os argumentos a demonstrar que a Portaria nº 12.072/2021 não se adéqua ao sistema penal vigente, trazendo em seu âmbito questões obscuras e que levam à inegável insegurança jurídica, além de inaceitável desequilíbrio ao acusado, que se vê obrigado a se insurgir simultaneamente contra a força de dois órgãos estatais no âmbito processual penal.
Se os diplomas que disciplinavam procedimentos relativos à extinção da punibilidade de crimes contra a ordem tributária já sinalizavam a instrumentalização do Direito Penal como meio para forçar o pagamento de débito tributário, o aumento dos poderes conferidos pela nova portaria à Fazenda Nacional deixa ainda mais claro o uso deste expediente.
Essa sanha arrecadatória fomenta a relativização das garantias e abre espaço para uma perigosa discricionariedade na interpretação das questões relativas à matéria. Não se pode admitir o atropelo da natureza garantista estabelecida na Carta da República. Processo penal é garantia, há de ser aplicado como limitador do poder arbitrário estatal. É sob essa vertente constitucional que todo o ordenamento deve se pautar, o que não foi feito na portaria aqui tratada.
É preciso dar coerência ao sistema legal com a adoção de uma política em consonância com o Estado Democrático de Direito, preservando-se o papel do processo penal, que, definitivamente, não é o de balcão de cobranças fiscais.
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